Ele caminhava a passos largos, pisando firme, como convém a um homem de verdade. Parecia sempre atrasado e atravessava a rua dividindo seu olhar entre o relógio, os carros e o ponto de ônibus logo à frente. Certamente sua intenção era verificar se ainda estávamos lá. Nós que éramos seus companheiros de itinerário, de segunda a sexta-feira, naquele improvável horário das 12h53 da tarde. Passageiros do ônibus 917-H – Metrô Vila Mariana.

Ao se dar conta de nossa presença, ele desacelerava o passo, relaxava o semblante e, aos poucos, dava início ao seu ritual vespertino. Chegava até o ponto e pousava sobre nós seus cortantes olhos orientais. Espadas que penetravam fundo, eliminando qualquer possibilidade de defesa. Sem dúvida um gesto calculado, seguido de um educado meneio de cabeça.

Ao se aproximar, era possível sentir seu perfume cítrico, com notas marcantes, dessas que embriagam as vítimas em questão de segundos. Devido ao meu exercício diário de observação aguda, dava até para ouvir os suspiros internalizados por todas as minhas companheiras de sexo e de transporte público. Só me restava ter pena do efeito devastador que aquilo deveria causar na estudante adolescente. Trajada com seu impecável uniforme escolar, talvez ainda não tivesse consciência do quanto era sexy e perturbadora, como uma personagem de mangá. Todos os dias era ela quem retribuía o olhar do samurai com uma expressão completamente apaixonada, lânguida e submissa. Diferente das demais, a coitadinha ainda não tinha idade nem experiência para usufruir do flerte de modo descompromissado e divertido. Faltava-lhe graduação em sedução e malícia.

Quanto a ele, não tinha mais de 25 anos e já se vestia de modo sóbrio, indicando uma profissão formal. Seria analista financeiro? Advogado? Executivo de contas? Por que ainda não tinha um carro? Mistérios paulistanos… O certo é que seus ternos obedeciam às cores mais tradicionais do sistema capitalista, uma vez que transitavam sempre entre o azul marinho e o preto. Era circunspecto ao extremo, como é pertinente aos samurais de todas as dinastias. Uma vez dentro do ônibus, ele se bastava. Não lia, não escutava música, não portava Ipod, pasta, laptop… Eram 35 minutos dedicados à contemplação e à arte de olhar pela janela. Enquanto isso, meu exercício preferido era imaginar o que se passava naquela cabeça nipônica adornada por lisos cabelos negros cortados à moda oriental do século 21: milimetricamente desalinhados, provocantes.

Certa vez sentei-me atrás dele e pude reparar em duas pintas marrons existentes em sua orelha direita, distantes cerca de um centímetro uma da outra. Ele passava a impressão de ser mesmo assim: completamente simétrico e cartesiano. Descia no mesmo ponto que eu, na Avenida Paulista. A bem da verdade, não éramos os únicos. Com algumas variações, cerca de 10 passageiros tinham ali o seu destino final. Dentre eles, várias mulheres.

Pouco antes de descermos – mais precisamente quando nos levantávamos em direção à porta –, o samurai, ciente de seu poder viril, novamente nos brindava com o brilho dilacerante de seus olhos de espada. E quem sabe por ter um caráter de despedida, ele o fazia com mais força e destreza, atingindo, conseqüentemente, profundidades maiores em nossos corpos. Tenho certeza de que, como eu, as outras mulheres desciam do ônibus um tanto mais pálidas e com uma incrível sensação de leveza. Era como se tivéssemos perdido, voluntariamente, litros e litros de sangue que se esvaiam naquela rápida e intensa troca de olhares. E nessa hora, restava a nós a estranha felicidade de sucumbir vencidas por aquele jogo delicioso – e de placar previsível – entre o samurai e as gueixas.

Goimar Dantas
São Paulo
17-07-08