Dia desses fui buscar minha filha na escola. Era final de tarde, por volta das 18h. Coloquei uma roupinha básica de ginástica porque, em seguida, eu iria direto para aula de yoga. Meus cabelos estavam soltos e despretensiosos, daquele jeito que não vê secador há dias. Na boca, um batonzinho chinfrim, comprado numa promoção tipo “leve três e pague dois”. No pé, meu único e velho tênis, uma vez que minha filha, que já calça o mesmo número que eu, se apropriou do meu outro par por uso capião, há uns seis meses. E foi desse jeito, despreparada e indefesa, que deparei com “ele”.

Dei de cara com o sujeito, ali, na calçada… Um arrepio percorreu meu corpo de ponta a ponta, instantaneamente. É sempre assim… Ao menor sinal de aproximação, fico trêmula, tesa, quase em estado de choque. Mas, naquele fim de tarde, quis dar uma de difícil. Então, respirei fundo e continuei andando, como se nada de diferente estivesse acontecendo.

Não olhei pra trás. E também nem precisava. Dava pra sentir sua presença marcante quase colada às minhas costas. Talvez fosse imaginação, mas juro que cheguei a sentir seu hálito de hortelã em meu pescoço – espécie de portal por onde entram sensações que tanto podem me salvar quanto condenar.

Tentei me desvencilhar: apertei o passo, ensaiei uma corrida, disparei pela rua. Em vão… Fugir era bobagem. Ele sempre me alcançava, independentemente de onde eu estivesse. Eu já tentara escapar outras vezes, mas o máximo que consegui foram quatro meses de distância. Parecia que, de alguma forma, eu estava condenada à sua presença e a todos os dramas decorrentes dela. Bastava alguém me dizer que ele estava por chegar para que eu ficasse física e psicologicamente alterada: sensação de impotência, medo de enfrentar a vida lá fora e uma certa prostração crônica que me fazia querer voltar ao útero materno. Pode soar exagerado, mas, de fato, ele tinha esse poder sobre mim. Era visível, não adiantava negar. Por isso, naquele final de tarde, por mais que eu tentasse desprezá-lo, terminei sucumbindo.

Ao chegar à escola, com aparência transtornada, a inspetora de alunos, sempre tão simpática, me encarou com ar de espanto – até porque eu emitia sinais evidentes do que acontecera: pelos eriçados, lábios trêmulos, respiração ofegante… A mulher não se conteve e perguntou: “- Minha filha, o que é isso?”

Só me restou tentar justificar: “Ai, Dona Valéria, é que eu não posso com o frio, sabe?? Ainda mais quando chega assim, sem avisar, me pegando de jeito, desprevenida, no meio da rua… Nem vesti um agasalho, olha só como estão os pelos dos meus braços… Tô quase congelando, toda arrepiada… Aposto que minha boca já está roxa”.

A mulher meneou a cabeça, quase não acreditando no que ouvia. Inconformada, rebateu: “Mas nem está tanto frio assim… É só um ventinho de final de tarde, típico do outono em São Paulo. Eu acho até gostoso, sabia?”.

Devolvi: “Ihhh, Dona Valéria… Mas, pra quem nasceu no sertão, qualquer vinte graus é neve… Quando tá ventando em Santa Catarina, eu já tô me cobrindo aqui”.

No caminho de volta, rendida, entregue e desarmada, dei início ao meu legítimo espetáculo de submissão a “ele”: cruzei os braços e, cabisbaixa, fui pra casa, batendo os dentes.

 Djavan – Um dia frio

Goimar Dantas
São Paulo
Outono/2009